Ler para existir: quando a leitura é mais abrigo do que hobby
Nem sempre li apenas por prazer. Às vezes, ler era a única maneira de seguir existindo. Entre uma página e outra, eu reencontrava o fôlego que a vida me roubava.
Nos últimos tempos, tenho pensado muito na minha relação com os livros e, por conta disso, às vezes me pergunto se não estou com a mania de problematizar tudo na minha vida.
Ou se é normal, nessa jornada de autoconhecimento que trilho há três anos, questionar meus gostos, minhas manias, meu jeito de ser e de me colocar no mundo.
Questionar a leitura em minha vida é um tópico sensível para mim, pois ler é meu hobby preferido desde sempre.
Não vou dizer que troco qualquer atividade por um bom livro, mas troco boa parte delas por ficar sentada no meu sofá, curtindo uma boa leitura, me perdendo na vida dos personagens.
Minha relação com os livros começou na mais tenra infância.
Meu irmão e eu nem sabíamos ler, mas já aguardávamos com ansiedade o momento em que meu pai nos leria uma história antes de nos colocar para dormir.
O livro era sempre o mesmo: Uma história por dia, da Disney — aquela coleção antiga de quatro livros, um para cada estação do ano.
Quando meu irmão e eu aprendemos a ler (ele antes de mim, pois é dois anos mais velho), passamos a revezar quem lia as histórias.
Meu pai continuava nos acompanhando no ritual, nos orientando na leitura e nos ajudando a pronunciar as palavras difíceis.
Cresci numa casa de leitores.
Papai estava sempre com um livro nas mãos e mais dois ou três na cabeceira.
Já minha mãe lia menos, mas hoje percebo que era devido à sua profissão.
Como advogada, ela passava a semana lendo diversos livros técnicos e processos; acredito que, aos finais de semana, ela só queria um pouco de silêncio mental.
Era comum, aos domingos, acordar e encontrar meu pai lendo na sala (e agora, enquanto escrevo este texto, me pergunto se é por isso que tenho mania de ler sentada no sofá da sala).
Nessas horas, eu sempre perguntava o que ele estava lendo e me interessava pelas histórias — mas livros sem figuras eram uma decepção.
Aos poucos, meus pais foram plantando a semente da leitura na nossa mente, enquanto tentavam impedir que a semente da televisão se espalhasse.
Deu certo. Meu irmão e eu raramente vemos televisão — o que tem seu lado ruim também, mas isso é papo para outro texto.
Se na infância a leitura era puro prazer e descobertas, na adolescência ela já começava a ser também abrigo.
Entrei na adolescência como uma leitora voraz de Agatha Christie e Sidney Sheldon, graças ao Círculo do Livro (alô, anos 90!), e contava os dias para a revistinha chegar, para eu poder escolher meu próximo exemplar e ver se tinha novidades no mundo do crime!
Até o dia em que comprei A Marca de uma Lágrima, do Pedro Bandeira, e me identifiquei com a Isabel, a protagonista — uma típica adolescente com autoestima baixa, fora do corpo padrão, que se escondia atrás dos seus textos, cartas de amor e livros.
Li tantas e tantas vezes esse livro que, ainda hoje, sou capaz de recitar em voz alta trechos da história e dos poemas ali escritos.
Hoje, quando relembro o meu espelhamento na Isabel, percebo que naquela época eu já tinha descoberto a fórmula que uso até hoje: me esconder do mundo entre as páginas dos livros.
Eu era a adolescente que passava os intervalos na biblioteca, em parte porque meu colégio tinha todos os livros da Agatha Christie — o que me permitiu ter o feito de ter lido toda sua coleção —, em parte porque eu fugia, de forma inconsciente, de ter que enfrentar os dissabores da vida adolescente.
Eu não me encaixava no padrão, não frequentava matinês, não tinha paqueras/namorados e também não fazia parte do grupo dos “adolescentes rebeldes”.
A biblioteca era um campo livre.
Lá havia os leitores como eu e os “meninos adolescentes”, rapazes que não estavam interessados em meninas (ou até estavam, mas também não se encaixavam no “padrão exigido”), e sim em jogar jogos como Yu-Gi-Oh, Uno e RPG.
Na faculdade, eu me tornei mais sociável, mas não me afastei da leitura.
Estava sempre com um livro na bolsa, e ele era uma ótima companhia tanto no trem quanto no ônibus.
A vida seguiu seu ritmo: nos dias alegres eu lia menos; nos dias tristes, lia mais.
Na vida adulta, o ciclo se repetiu: em tempos de dor, os livros voltavam a ser meu porto seguro.
Casei e, logo em seguida, meu pai faleceu. Voltei a ser uma leitora voraz — como os anos iniciais da vida adulta não me permitiram ser.
Lia para fugir da realidade de tristeza que cercava meu espírito e para me conectar com meu pai de alguma forma, através dos livros, a sua maior herança em minha vida.
Por puro instinto, eu já praticava o que diversos estudos na área de psicologia mostram: a leitura funciona como um mecanismo de enfrentamento (coping mechanism) saudável, ajudando a pessoa a lidar com estresse, ansiedade e tristeza, promovendo assim uma melhora na saúde mental e no bem-estar emocional.
Nessa época, fui morar num lugar mais isolado, e para ter acesso a uma livraria ou shopping eu precisava dirigir quarenta minutos em rodovia.
Então, para facilitar minha vida de leitora, comprei um Kindle.
A última vez que contei quantos livros lia por ano foi quando eu era adolescente e disputava com meu irmão quem lia mais livros.
Ele sempre ganhava, pois herdou a facilidade de ler dois ou três livros de uma vez do meu pai.
Hoje, eu já tenho essa habilidade, mas levei muito tempo treinando.
O Kindle conta quantos livros você leu — e foi por causa disso que este texto surgiu.
Abri o app do Kindle e ele me disse que já li dezenove livros este ano.
Isso me deu um insight e eu resolvi analisar os dados de todos os anos que ele tinha registrado e ver os livros que li, pois às vezes esqueço.
Guardo apenas o nome dos livros que me marcaram; os demais só me lembro se, por acaso, alguém falar deles.
Com um olhar crítico para o número de livros que li em cada ano, percebi que, nos dois últimos anos do meu casamento — quando ele já estava descendo ladeira abaixo —, foram os anos em que bati meu recorde pessoal de leitura, segundo o Kindle.
Para fins numéricos, cheguei a ler setenta e dois livros; já em anos “normais”, eu lia trinta livros. Em outros anos, nos quais a carga emocional vivida também havia sido pesada, lá estava o crescimento exponencial na leitura.
Depois disso, comecei a repensar meu relacionamento com os livros: quanto do que eu leio é por hobby e quanto é por fuga?
Será que todo leitor também usa os livros, nem que seja um pouquinho, para fugir?
Ter um livro como terapeuta e amigo é ruim?
Talvez só seja ruim se você não fizer terapia com um profissional e não tiver amigos na vida real.
Percebi que leio sim por hobby, mas que essa leitura tem um padrão.
Quando estou lendo para me distrair, escolho livros clássicos ou algum romance contemporâneo.
Se a leitura for para esvaziar a mente, fugir da tristeza ou da ansiedade, minha escolha fatalmente será um romance romântico (aquele famoso "romance de banca", sabe? Nem sei se ainda chamam assim), um bem meloso e com final feliz.
Leio com uma rapidez estrondosa, mergulho no livro e não penso em mais nada.
Assim como as pessoas que são viciadas em séries e ficam maratonando vários episódios para fugir um pouco da realidade, acredito que todo leitor também tenha um livro que é sua válvula de escape.
E eu acho que isso é saudável, desde que você não negligencie problemas sérios de saúde mental.
Como eu disse antes, ter um livro como amigo e terapeuta é algo bom — como um complemento à terapia feita com um profissional e aos amigos da vida real.
Muitas vezes, ao olhar a vida de uma personagem, você consegue analisar problemas de forma clara e vislumbrar soluções — e, de repente, se dá conta de que está vivendo algo parecido, podendo usar a solução que surgiu na sua própria vida.
O livro também é capaz de te abraçar através das palavras e te oferecer consolo em momentos difíceis.
Mesmo tendo amigos maravilhosos, nem sempre consigo (ou quero) explicar de forma clara o que estou sentindo, mas me sinto acolhida num diálogo ou nos devaneios das personagens.
Passados os problemas ligados aos números e às fugas emocionais, resolvi avaliar os problemas ligados à minha autoestima e ao feminino. Afinal, já que eu não sou bonita, eu sou inteligente!
Justo eu, que adoro dizer para os quatro cantos que não é porque você leu bons livros que você é inteligente.
Me descobri usuária dessa personagem leitora-inteligente, para justificar para o mundo minhas falhas na beleza-padrão e, quem sabe assim, ser aceita e amada por todos.
Eu sei bem onde nasceu dentro de mim essa capa protetora leitora-inteligente: nasceu naquela menina adolescente que não estava no padrão e que ouviu tantas vezes que “é melhor ser inteligente que bonita” e “é melhor ser reconhecida pelo seu cérebro que pelo seu corpo”.
Coloquei as frases no presente de forma proposital — não que eu ainda acredite nelas, mas sei bem que elas continuam sendo ditas por aí.
A sociedade ensina a nós, mulheres, desde a infância, que devemos nos preocupar em sermos inteligentes e independentes, mas nos cobra todos os dias o pacote completo: inteligência, independência, ser bonita sem jamais envelhecer e ser uma mãe excelente.
Optou por não ser mãe? Então sua carreira e vida social (viagens, festas…) têm que justificar tal escolha.
Na minha cabeça de adolescente com baixa autoestima, se eu não era bonita, eu precisava ser inteligente.
Então eu me agarrei aos livros em busca do meu título leitora-inteligente.
Foi nessa época também que nasceu meu amor por livros clássicos — afinal, nada mais inteligente do que ler um livro clássico.
E assim construí uma autoestima fraca e baseada na aprovação do outro.
Me perceber como uma mulher inteligente, independente e bonita aconteceu depois de longos anos de terapia, mas principalmente quando entrei nessa jornada de autoconhecimento.
Me despedi da capa protetora leitora-inteligente, mas confesso que ainda uso os livros como válvula de escape em momentos difíceis emocionalmente.
Não vejo problema nisso, desde que eles não sejam os únicos a me oferecer conforto emocional.
Que presente para nós leitores, você compartilhar seus sentimenos, paixões e vulnerabilidades dessa forma. Há 23 anos atrás nos aproximamos por conta dessa mesma paixão, e acredito pelas mesma capa protetora de mulher inteligente. É uma satisfação acompanhar o seu processo de autoconhecimento e o seu florescer para essa escritora sensível e magica!🌸🌺